Quando um dos pais do teu paciente é psiquiatra e paciente e tu só quer ir pra cama

Se tu quer testar a fé de um psiquiatra na “ciência” dele, apresenta a ele um dos dele.

Na minha carreira eu tratei umas dúzias de filhos/cônjuges de médicos, e mais ou menos uma dúzia de psiquiatras. Tratar pacientes com essas conexões é difícil, sendo honesto, por dois motivos: 1) muitos dos truques e distrações que nós usamos nos nossos pacientes normais não funcionam neles, porque eles conhecem o jogo. 2) nós sentimos pressão tremenda pra fazer um bom trabalho, porque nós sentimos que estamos sendo avaliados.

O resultado é que nós quase sempre fazemos um trabalho inferior. Deixando de lado a advertência contra tratar parentes, a realidade é que se eles soubessem o que fazer, eles não estariam indicando pra ti. E os truques e distrações são partes vitais da dança: eles dizem que tu na verdade não faz idéia como isso funciona, mas tu tem otimismo, então tu oferece um modelo pra pensar sobre como poderia funcionar. O modelo não precisa ser “verdadeiro” – ele precisa ser internamente consistente.

Mas a contratransferência pro paciente e a sua família é tão forte que nós fazemos coisas que não deveríamos, pensamos coisas que não deveríamos.

O tratamento é ainda mais difícil quando o pai/mãe/cônjuge psiquiatra do paciente também é paciente psiquiátrico em algum lugar. Se tu quer ver um departamento inteiro ter aneurismas ao mesmo tempo, diz “Eu tô recebendo X como paciente, e a mãe do(a) X é psiquiatra – e paciente na clínica pra bipolaridade!”

Em qualquer outro cenário, uma mãe na clínica pra bipolaridade sugeriria que o filho tem uma desordem similar, por ser parente de primeiro grau. Mas nesses casos, psiquiatras interpretam diferentemente: significa que a mãe enlouqueceu a criança. Foi culpa da mãe. Não da genética, ou biologia, ou mesmo ambiente comum: especificamente má criação. E não bipolaridade – desordem de personalidade.

Eu posso fazer uma afirmação sem nenhuma ressalva, sem exceção: nunca, nem uma vez, alguém ouvindo sobre esse cenário me disse algo como “bipolaridade em famílias instruídas é difícil de tratar”. Em todo caso, de novo, sem exceção, cada pessoa que ouviu sobre a situação disse exatamente a mesma coisa: “Meu Deus, ela é borderline, e a mãe é mais louca ainda.”

O que é interessante nisso, pra mim, são duas coisas. Primeiro, quão imediata, reflexiva, e confiante é essa avaliação de todo mundo – dada antes deles sequer verem o paciente, só ouvindo que a mãe de um paciente é psiquiatra. “A mãe é psiquiatra …” Bum. Caso encerrado. Pela janela vão diagnóstico, biologia, serotonina, efeito kindling, TSH, o que for – imediatamente se prevê que é desordem de personalidade devido a uma relação nociva entre mãe/pai e filho (ou entre cônjuges). Envolvida demais, envolvida de menos, abusiva, manipuladora, enfim.

Medicamentos são inevitavelmente considerados paliativos – com boa chance de serem trocados milhares de vezes ao longo da vida – ou símbolos pra manobras terapêuticas (“Eu vou te nutrir te dando clonazepam extra pros feriados, mas depois eu vou ser um pai-substituto disciplinado e reduzir em janeiro.”) Um histórico familiar de linfoma no sistema nervoso central é menos revelador que um pai psicanalista. O filho adulto é louco porque os pais deixaram louco.

Essa é a primeira coisa. A segunda é: eles quase sempre têm razão.

Borderline

O narcisismo – que eu creio que é a doença primária da nossa época – é um lado de uma moeda. O outro lado – que possibilita o narcisista – é a borderline.

Se a analogia pro narcisismo é “ser o personagem principal do próprio filme”, a analogia pra borderline é ser uma atriz.

Nota a diferença: o narcisista é um personagem – inventado mas bem escrito, completo com passado e identidade. O narcisista tenta ser algo – que já tem um modelo. Talvez ele se considere artístico, valente, espiritual, ou como o cara em Matrix. Tipos, personagens. A borderline é ninguém: a borderline espera que o script a defina.

Ela? Sim. Narcisistas são na maioria homens, e borderlines mulheres. (Nem sempre, claro.)

A descrição clássica inclui: relacionamentos intensos e instáveis; flutuabilidade emocional; medo de abandono. A borderline não tem senso real de si mesma.

Ironicamente, a borderline só é borderline em relação a outras pessoas. A borderline tem um problema de identidade só porque outras pessoas têm identidades mais fortes. O teu pai quer que tu seja de um jeito, então tu é. O teu namorado quer uma mulher diferente; então tu é. O teu marido quer outra coisa; então tu é. Quem diabos tu é, na verdade? Tu não faz idéia, porque tu sempre te molda à personalidade dominante na tua vida.

Isso é feito principalmente por medo de abandono: se tu não “for” a pessoa que eles querem, eles vão te largar, e aí o que tu faz? (Borderlines não ficam sem relacionamentos – elas largam um por outro.)

O narcisista cria uma identidade, então tenta forçar todo mundo a acreditar nela. A borderline espera encontrar alguém, e constrói uma personalidade adequada àquela pessoa.

Se uma borderline namora um cara que adora os Dallas Cowboys, é certo que ela vai adorar os Dallas Cowboys. Se, no entanto, ela largar ele, e namorar um cara que adora os Giants, ela vai adorar os Giants. Mas o que faz ela borderline é: ela realmente vai acreditar que os Giants são melhores. Ela não tá mentindo, e não tá fazendo isso por ele; ela realmente acredita nisso. Todo mundo vendo de fora nota que é obviamente função de quem ela namora, mas ela tem certeza de que teve a idéia ela mesma. E ela não tá fingindo: naquele momento ela acredita, com cada fibra do ser dela, que os Giants são melhores.

Agora a ironia: se uma borderline, depois de um naufrágio, fosse parar numa ilha deserta, ela desenvolveria uma identidade real, própria, não uma reação a outras pessoas. Desculpa, não foi essa a ironia, a ironia é: ela se tornaria narcisista.

A borderline tem os marcadores externos de identidade: tatuagens, cores de cabelo diferentes, roupas. Tu pode lembrar que eu disse quase o mesmo sobre o narcisista: a diferença, claro, é que a borderline muda a imagem conforme muda a identidade – em outras palavras, conforme troca a personalidade dominante na vida dela; mas o narcisista cria um visual, uma identidade, que ele então defende a todo custo: “Eu antes comeria formigas-de-fogo do que cortar o bigode.” Claro. Claro.

Todos esses filmes bobos sobre uma mulher que vai embora, ou pra cidade grande, e “se encontra”: isso é uma borderline se tornando narcisista.

Se tu olhar pros relacionamentos duradouros que tu já teve, e ficar completamente surpresa pensando sobre o que foi que tu viu nessas pessoas que te fez ficar com elas por um ano; bem, taí.

É por isso que narcisistas casam com borderlines, não outros narcisistas. Dois narcisistas simplesmente não se aguentam: quem é o personagem principal? Enquanto isso, dois borderlines não podem ficar um com o outro – quem entra com a identidade? O narcisista se dá bem com a borderline porque ela dá pra ele a confirmação de que ele é, de fato, principal; a borderline se dá bem com o narcisista porque ele define ela. E, como ela vai te dizer sempre, sem falta: “tu não conhece ele como eu conheço”. Todos os outros julgam o comportamento dele; mas a borderline julga a versão dele mesmo que ela aceitou.

Volta pro meu exemplo dos sapatos de salto alto. O narcisista exige que a mulher dele use sapatos de salto alto brancos não por ele gostar deles ele mesmo – ele pode gostar ou não – mas porque ele é o tipo de homem que estaria com o tipo de mulher que usa sapatos de salto alto brancos. Ele pensa que é o homem sofisticado e masculino da década de 1980, então é melhor que ela seja a Kim Basinger de 9 1/2 Semanas de Amor. Cabelo loiro, sapatos de salto alto brancos. Ela poderia pesar 200 kg, essa não é a questão (mas vai se tornar uma depois). Então ela usa os sapatos, e começa a acreditar que ele gosta deles, começa a acreditar que ela é aquela mulher. Ele reforça isso com certos comportamentos ou palavras pra ela (ele vai abrir a porta pra ela, empurrar a cadeira dela, etc. Tu pergunta “Qual o problema?” Nenhum, fora ele TAMBÉM bater nela quando ela não usa os sapatos).

É quase síndrome de esposa agredida: o que mantém ela com aquele maníaco é que quando ele não bate nela, parece que ele é bom pra ela, tamanha a diferença entre apanhar e simplesmente não apanhar. Enquanto isso tudo que ele faz de errado tem uma explicação externa: foi o álcool, ele tá estressado, etc. E ela racionaliza pra benefício ela, não dele, porque é vital pra sobrevivência psicológica dela que ele seja quem ele diz que é, que ele realmente tenha uma identidade estável com a qual coisas acontecem, porque a identidade dela depende da dele como base.

É por isso que o terapeuta tem tanto que manter neutralidade e consistência nas sessões. Não é só pra evitar conflito; sendo a personalidade mais dominante (leia-se: consistente), a borderline pode começar a construir uma pra si mesma usando a tua como guia.

Se a borderline soa como uma guria de 15 anos, é porque é isso que ela é. A diferença, claro, é que a guria de 15 anos de verdade deve ser inconstante, testando identidades e filosofias e visuais até encontrar o que é “ela”. Mas se tu tem 30 anos e faz isso, bem …


(Por sinal, se tu quer entender o mistério do vício em sapatos das mulheres, minha opinião: sapatos são o artigo de vestimenta que representa possibilidade. Cada sapato é um visual diferente, um caráter diferente, e ela pode escolher “quem” ela quer ser naquele dia. Tu pode não perceber a diferença, mas ela sente. Isso não é borderline – é normal, mas é normal porque o sapato muda e o resto dela não.)

Se essa é uma das coisas mais atraentes que tu já viu, tu pode ser narcisista

Uma introdução rápida ao novo narcisismo.

Eu não quero dizer as descrições tradicionais por Kernberg, Kohut, ou mesmo Freud. Eu acho que o narcisismo evoluiu em tempos modernos.

Um narcisista não é necessariamente um egotista, alguém que se acha o melhor. Um critério simples é uma falta de consciência de que outras pessoas existem, e têm pensamentos, sentimentos, e ações sem ligação com o narcisista. Esses pensamentos não precisam ser bons, mas precisam ser ligados ao narcisista. (“Eu vou ter que abastecer – porque aquele imbecil nunca enche o tanque.”)

O narcisista pensa que é o personagem principal no seu próprio filme. Todos os outros são secundários – todo mundo em volta dele vira um “tipo”. Sabe como em cada comédia romântica, sempre tem a amiga engraçada que ajuda a personagem principal a entender o relacionamento? No filme, a existência inteira dela é estar lá pra ajudar a personagem principal. Mas na vida real, aquela amiga engraçada tem a própria vida; ela pode até ser a personagem principal no próprio filme, certo? Bem, a narcisista não seria capaz de apreciar isso. As amigas dela sempre apoiam, podem ser chamadas qualquer hora da noite, sempre têm interesse no que ela veste ou faz. Aquela amiga engraçada não é só boa amiga, não quer só ajudar – ela tem interesse pessoal na vida da narcisista. Claro que ela tem.

Um comediante, não lembro qual, fez uma piada sobre atores em Los Angeles, mas se aplica a narcisistas: quando dois narcisistas saem, eles só esperam a boca da outra pessoa parar de se mexer pra eles poderem falar sobre si mesmos.

Então de um lado, o narcisista reduz todas as outras pessoas a tipos em relação a ele mesmo; do outro, o narcisista, como personagem principal do próprio filme, tem uma identidade que ele quer (isso é, inventou) e exige que todos os outros a complementem.

Um narcisista tem a mesma aparência todo dia; ele tem um “visual” com uma característica distinta: um certo corte de cabelo; um bigode; um tipo de roupa, uma tatuagem. Ele usa isso pra criar uma identidade na mente dele que ele vai gastar muita energia mantendo.

Considera o narcisista que quer que a esposa só use sapatos de salto alto brancos. O narcisista quer isso não porque ele em si gosta de sapatos de salto alto brancos – talvez goste – mas porque o tipo de pessoa que ele pensa que ele é só estaria com o tipo de mulher que usa sapatos de salto alto brancos. Ou, em outras palavras, outras pessoas esperariam ver alguém como ele com uma mulher que usa esses sapatos. Do que ele gosta não é o fator relevante, e certamente do que ela gosta é irrelevante. O que importa é que ela e os sapatos dela são acessórios pra ele.

Não importa se a mulher é obesa, ou tem 65 anos, ou se os sapatos são fora de moda, ou impráticos – os sapatos representam algo pra ele, e ele tenta reforçar a identidade ele através daquele objeto.

Narcisistas tipicamente se focam em coisas específicas como representações das identidades deles. Como no exemplo acima, a mulher ser obesa ou paraplégica pode ser ignorado se o calçado for a representação da identidade. Essas representações também são fáceis de descrever mas carregadas de implicações: “Eu sou casado com uma loira.” Dizer “loira” implica algo – por exemplo, que ela é gostosa – que pode não ser verdade. Mas o narcisista fetichizou tanto “loira” que se torna algo desconectado da realidade. As conotações, não a realidade, são o que importa (especialmente se outras pessoas não puderem verificar).

Isso explica porque narcisistas se sentem especialmente ofendidos quando o objeto fetichizado some. “A minha esposa parou de pintar o cabelo de loiro; mas quando ela tinha os outros namorados, ela ia pro salão todo mês. Cadela.” Ele não vê a óbvia passagem do tempo, o que ele vê é parte da identidade dele sendo tirada dele, de propósito. O insulto final: “Ela obviamente não se importa tanto comigo quanto se importava com os namorados antigos.”

Como um paradigma, o narcisista é primeiro (ou único) filho, de 2 a 3 anos de idade. Tudo é sobre ele, e tudo é binário. Dele, ou não dele. Satisfeito, ou insatisfeito. Com fome, ou sem fome. Mamãe e Papai falam um com o outro e não comigo? “Oi! Prestem atenção em mim!” Filhos mais novos tipicamente não se tornam narcisistas porque desde que eles nascem, eles sabem que há outros personagens no filme. (Mais novos têm transtorno limítrofe mais facilmente.) Controle, é claro, é importante pra um narcisista. Se tu consegue imaginar um homem de 40 anos com o ego de uma criança de 2, tu tem um narcisista.

Obviamente, nem todo primeiro filho se torna narcisista. Parte do desenvolvimento deles vem de não aprender que há certo e errado fora deles. Isso pode vir de criação incosistente pelos pais:

Papai diz “Guri burro, não vê TV, TV é ruim, vai te deixar burro!” Certo. Lição aprendida. Mas um dia Papai precisa trabalhar: “Para de fazer tanto barulho! Aqui, senta e vê TV.” Qual a mensagem aprendida? Não é que TV é às vezes ruim e às vezes boa. É que o que é bom e o que é ruim são decididos pela pessoa com mais poder.

Então o objetivo no desenvolvimento é se tornar aquele com mais poder. Portanto, narcisistas podem ser dogmáticos (“Adultério é imoral!”) e hipócritas (“foi ela que deu em cima de mim, e tu tava me ignorando em casa”) ao mesmo tempo. Não há certo e errado – só certo e errado pra eles. Um exemplo exagerado: se eles tiverem que matar alguém pra conseguir algo que eles querem, assim seja. Mas quando eles matam, eles não pensam que o que fazem é errado – eles dizem “Eu sei que é ilegal, mas se tu entendesse a situação inteira, tu entenderia …”

Narcisistas nunca sentem culpa. Só vergonha.

Um exército de narcisistas? De jeito nenhum

(Nota do tradutor: artigo publicado em inglês em 26/12/2006 no blog The Last Psychiatrist (“O Último Psiquiatra”), atualmente inativo.)

Um tremendo exemplo do narcisismo da nossa sociedade sobre o qual eu escrevi no meu artigo sobre a Time com a capa engraçada. Se existisse alguma organização que eu consideraria em oposição direta ao narcisismo, seria as forças armadas, e no entanto eis aqui ele, sendo especificamente promovido.

(N.d.t.: Stephen Colbert é um humorista que faz sátira política.)

Eu entendo a necessidade prática dessa abordagem, claro: a tentativa de se conectar a um povo apático que recebe notícias atuais de vídeos do Colbert Report no YouTube – eles não se dão o trabalho de encontrar o Iraque ou o Afeganistão num mapa, muito menos se alistar. Mas marca minhas palavras, quando as forças armadas não podem apelar a crenças maiores com qualquer efeito, e precisam recorrer unicamente a ilusões condescendentes de realizações individuais, essa sociedade não pode durar.

Olha a evolução dos slogans, e me diz que eu exagero (do Army Times):

O Exército de hoje quer se juntar a você“: 1971-1973.

Junte-se às pessoas que se juntaram ao Exército“: 1973-1979.

Esse é o Exército“: 1979-1981.

Seja tudo que você pode ser“: 1981-2001.

Um Exército de um“: 2001-2006.

Olha a gramática, as conotações semióticas. Uma pergunta pros historiadores seria se uma civilização em declínio sabe ou não que declina; e se não, o que eles pensavam que acontecia?

Mas talvez nem tudo esteja perdido. O Exército acabou de anunciar o seu novo lema de recrutamento, que aparentemente teve bons resultados em testes: “Forte como o Exército.”


Aliás, a campanha “Forte como o Exército” foi criada pela nova empresa de publicidade do Exército, a McCann Erikson. Eles são responsáveis pela campanha “não tem preço/existem coisas que o dinheiro não compra” da MasterCard. É claro, isso custou um bilhão de dólares pro Exército.

Eu vou voltar pra psiquiatria agora.

A Pessoa do Ano da Time é alguém que na verdade não importa

(Nota do tradutor: artigo publicado em inglês em 17/12/2006 no blog The Last Psychiatrist (“O Último Psiquiatra”), atualmente inativo.)

É tu.

(N.d.t.: capa da revista Time, com legenda “Pessoa do Ano”; adicionados pelo autor imagem de computador com tela azul e texto “Êeee!! Eu!!” e outra legenda “Parabéns! Tu foi afirmado! Agora vai te foder.”)

A versão curta do artigo da Time é que nós como indivíduos formamos uma comunidade na Internet (YouTube, MySpace, Wikipedia, etc.), e essa comunidade começa a “construir uma nova forma de entendimento internacional, não de político pra político … mas de pessoa pra pessoa.”

Tá. Não. Errado, errado, tudo errado.

O autor desse artigo é Lev Grossman. Grossman é um crítico literário mais ou menos famoso, um dos melhores. Ele também escreveu um romance que é um cumprimento ao Borges. Isso não é ruim, é só contexto.

O problema todo da premissa do Grossman é exemplificado pelo primeiro parágrafo:

“A teoria histórica dos “Grandes Homens” é geralmente atribuída ao filósofo escocês Thomas Carlyle, que escreveu que “a história do mundo é nada mais do que a biografia dos grandes homens”. Ele acreditava que são os poucos, os poderosos e os famosos que moldam o nosso destino coletivo como espécie. Essa teoria apanhou feio esse ano.”

Bem, não exatamente. A tese do Grossman é de que nós importamos, nós podemos moldar nossos destinos; ele contrasta isso com a premissa do Carlyle de que grandes homens ajudam a moldar o destino. Mas isso não é o que Carlyle realmente disse. O texto original:

“Em todas as épocas da história do mundo, nós encontraremos o Grande Homem tendo sido o salvador indispensável da sua época – o relâmpago, sem o qual o combustível nunca teria queimado. A História do mundo, eu já disse, foi a biografia dos Grandes Homens.”

Carlyle não diz que grandes homens moldam o destino; ele diz que grandes homens, e apenas grandes homens, causam história. Esses grandes homens deveriam receber o poder de administrar a sociedade porque só neles se pode confiar pra isso. Grandes homens causam a história, não moldam.

Não se pode confiar na democracia. Socialismo paternalista, ou ao menos uma aristocracia não-hereditária e anti-capitalista, é só o que pode nos livrar das trevas da oclocracia. Indivíduos triunfam sobre ideologia – o que soa como um bom lema, exceto quando indivíduos significa Stalin e ideologia significa liberalismo. Ah, e o último livro que Hitler leu foi a História de Frederico II da Prússia do Carlyle.

Então o Grossman não tá realmente representando Carlyle direito. Isso é importante porque o Grossman é um crítico literário com um doutorado de Harvard em literatura comparativa. Ou ele simplesmente não sabia isso sobre Carlyle, o que eu tenho que presumir impossível, ou saber não fez diferença: ele se apossou da citação, arrancou o sentido que Carlyle deu e usou da forma como precisava usar. E isso descreve exatamente o problema: verdade e realidade não são importantes, o que é importante é tu.

Porque “Você” como Pessoa do Ano é um baita sinal. É tanto representativo quanto sintomático do problema do nosso tempo: narcisismo. Hoje em dia nós estamos tão alienados e importamos tão pouco pra sociedade maior que a única coisa que inflama alguma paixão é sermos lembrados disso. Considera Bush e Cheney. Põe a política de lado por um momento, é claro que o foco do propósito deles ignora cada um de nós como indivíduo. Dá a eles o benefício da dúvida, sobre eles estarem fazendo o que eles acham que é melhor. Mas é melhor pra sociedade, pros Estados Unidos: o que nós odiamos é que não é pra nós, pra ti, pra mim. Isso é o que as pessoas odeiam neles, a aparente indiferença ao nosso valor individual, ao nosso senso de importância. Nossos votos não contam; tudo é sobre religião; “Guerra Global Contra o Terrorismo”. Cadê nisso tudo o indivíduo? Nós somos ferramentas pra “causa superior” deles. Eu conheço gente que diz ter raiva da causa; mas eu acho que é raiva de nós estarmos sendo usados pro que quer que seja.

(N.d.t.: o que eu pretendo aqui é em geral eu só traduzir e o que eu penso não ser importante, mas sinto que tenho que abrir exceção pra pedir desculpas pelo parágrafo acima sugerir que a Guerra do Iraque reduziu, ou sequer foi tentativa de reduzir, o terrorismo, como a década-e-meia seguinte mostrou. Mas achei que o artigo vale ler, e que não devo cortar os parágrafos que me desagradarem.)

Estar no YouTube, ter um blog, ter um iPod, estar no MySpace – tudo isso é auto-afirmativo, permite a ilusão que é tão importante pra narcisistas: de que nós somos os personagens principais num filme. Não que nós somos os melhores, ou os bons, mas os principais. Que todos em volta de nós são coadjuvantes; o amigo engraçado, a ex louca, a mãe neurótica, o imbecil egoísta com tive um encontro, etc. Isso faz sermos relembrados da nossa insignificância ainda mais enfurecedor.

Dá uma olhada nas fotos no artigo da Time: um DJ, um roqueiro punk, um cara com dreadlocks, um guri dançando com fones de ouvido, um cara cantando ao microfone, uma gostosa tirando foto dela mesma – nenhuma dessas pessoas jamais poderia ser “Pessoa do Ano”. Elas mal têm identidades além das suas imagens. (E observa quantas são definidas pela música que escutam.) Elas precisam ser definidas por algo de fora, como uma tatuagem. Mas elas merecem tudo que qualquer outra pessoa pode ter. É direito delas.

Eu não digo que cada um de nós como indivíduo é insignificante. Nós devemos, podemos, importar. Mas pra nos proteger de uma implosão existencial, nós decidimos nos definir através de imagens e sinais, ao invés de comportamentos; não ter uma identidade fundamentada em qualquer coisa real nos deixa vulneráveis a raiva e ressentimento. Mas nenhuma culpa, nunca. O narcisista nunca sente culpa. Ele sente vergonha.

Isso não pode durar. Se a sociedade escolher fazer do narcisismo o estado normal, vamos ter que lidar com feridas narcísicas sobre a sociedade toda – quando nós subitamente percebermos que o filme não é só nosso e não somos realmente personagens principais. E ninguém quer assistir esse filme idiota de qualquer forma. Isso inevitavelmente leva a violência: o tipo de violência do atirador na escola, de facadas inexplicáveis por causa de um PlayStation 3, da Andrea Yates, de espancar a esposa porque ela usou os sapatos errados. Ah, não eram pumps de salto alto brancos? Essa cadela! Ela usava eles pro outro namorado.

Eu não tenho certeza de que alguém na psiquiatria vê isso – eles tão ocupados demais documentando os excessos da indústria farmacêutica e os resultados do Lamictal – mas esse é o problema do nosso tempo. Os únicos que parecem perceber são os anunciantes – eles veem. Eles não julgam, só lucram.

Grossman pôde moldar Carlyle na forma que queria porque Carlyle não importa, o que importa é o que Grossman queria, do que Grossman precisava. Carlyle não existe, ou só existe conforme nós precisarmos usar. Ele se torna uma ferramenta, outro coadjuvante. Alguém ainda lê Carlyle? Pra quê? Nós só precisamos de umas frases chamativas pro nosso uso. Grossman é claramente um bom escritor e dificilmente o problema aqui. Mas escolher “Você” pra Pessoa do Ano só reforça a fantasia coletiva de que nossos eus individuais importam mais do que outras pessoas, ou bens coletivos, ou ideologias, ou verdade, ou certo e errado. É relativismo com uma cereja em cima.

Não vai durar. Absolutamente não pode.

Homicídio-suicídio

(Nota do tradutor: artigo publicado em inglês em 05/12/2006 no blog The Last Psychiatrist (“O Último Psiquiatra”), atualmente inativo.)

Só achei que tu devia saber:

há cerca de 1200 homicídios-suicídios por ano (i.e. 500-600 suicídios pela pessoa que acabou de matar outra).

(N.d.t.: nos Estados Unidos.)

75% envolvem namorado(a) ou cônjuge; 96% dos homicidas são homens (dã).

92% envolvem armas de fogo.

92% ocorrem na casa da vítima.

Há uma diferença média de idade de 6 anos entre o homicida e sua vítima. O risco aumenta com diferença de idade maior.

Em 23% dos homicídios-suicídios (digamos, cerca de 130), o homicida tem 55 anos ou mais. Compara com a taxa de homicídio em geral por gente de 55 anos ou mais: 5%.

Compara isso com as estatísticas de suicídio da população em geral, e eu acho que tu vai concordar que tem um número incrivelmente alto de pessoas morrendo nas mãos dos seus namorados/maridos imbecis. “Tu não entende, eu amava ela, eu faria qualquer coisa por ela, e ela mentiu, deu por aí – todo esse tempo não significou nada pra ela – ela não me ouvia! Como ela pôde pegar o que a gente tinha e jogar fora? Não faz sentido nenhum!”

A questão social é o que aconteceu com muitos homens que os fez incapazes de se definirem, ou de afirmar o valor deles, exceto por meio de outra pessoa. E “amor” – ou a distorção dele – e agressão são fortemente ligados em tais pessoas. Mas isso é narcisismo, e é a doença da nossa época.

Quem se beneficiaria?

(Nota do tradutor: artigo publicado em inglês em 02/12/2006 no blog The Last Psychiatrist (“O Último Psiquiatra”), atualmente inativo.)

(N.d.t.: capa de revista com foto de mulher jovem; nome traduzido “Psiquiatria”, matéria de capa “A Arte da Psicoterapia”, e trecho destacado “As consequências de terapia incompatível podem ser desastrosas.”.)

Nota a legenda embaixo. Essa é uma capa interessante. Ninguém jamais teria pensado em criar uma advertência similar sobre as consequências desastrosas de incompatibilidade com, digamos, Depakote. Nós sabemos que ele tem efeitos colaterais, mas nunca seria desastroso, certo?

(N.d.t.: valproato de sódio é usado pra tratar epilepsia, bipolaridade (mais diagnosticada em mulheres do que em homens), e enxaqueca, e causa náusea e sonolência em cerca de 20% dos pacientes, pode aumentar o risco de suicídio, e causa (em geral, não como exceção) atrofias no bebê se tomado por grávida.)

Mas por que terapia ruim seria desastrosa? Se a psiquiatria é tão baseada na biologia que um ambiente ruim não é a causa principal de problemas psicológicos, por que terapia ruim seria tão poderosa? Se má criação pelos pais não pode causar distúrbio de atenção, como pode terapia ruim piorar?

“A Arte da Psicoterapia”. Certo. Mas por que “ciência da farmacologia”? Porque nós dizemos “5HT2A” pra lá e pra cá como se soubéssemos do que falamos?

A frase seguinte diz “Selecionando pacientes pra psicoterapia psicodinâmica”. Mulheres brancas, jovens, e atraentes, talvez? Mas eles não quiseram dizer isso, claro. É só uma imagem.

Quase ninguém aprecia – e ninguém mesmo diz – o quão fundo os preconceitos penetram na psiquiatria. Não é coincidência que a psiquiatria foi misturada com assistência social, responsabilidade criminal, etc. O debate sobre “inato ou adquirido” é uma distração, um truque de mágica. Ele nos permite nunca ter que dizer o seguinte:

“Se eles são ricos e inteligentes, e podem entender como os comportamentos deles afetam os humores deles, nós podemos ajudar eles a se ajudarem. E eles não vão querer tomar remédios com efeitos colaterais mesmo.

Mas se eles são pobres ou de pouca inteligência, nós nunca vamos poder mudar o ambiente caótico deles, ou melhorar o autoconhecimento ou bom senso deles. No entanto, um fracasso social desse tamanho não pode ser encarado de frente; nós temos que deixar eles com a ilusão de que o comportamento não é inteiramente sujeito à vontade; de que as circunstâncias deles não dependem da atividade deles; de que os homens não são todos criados iguais. Porque sem a proteção que a psiquiatria oferece, eles vão exigir comunismo.”

(N.d.t.: “todos os homens são criados iguais” aparece na Declaração de Independência dos Estados Unidos.)

Psiquiatria é política

(Nota do tradutor: artigo publicado em inglês em 31/10/2006 no blog The Last Psychiatrist (“O Último Psiquiatra”), atualmente inativo.)

Psiquiatria é política, é política da forma como concorrer a cargo eletivo é política. Não é uma ciência, não é nem perto de ciência, é muito mais próxima da política.

Um médico faz um diagnóstico de um paciente e escreve no formulário. Se fosse ciência, eu deveria ser capaz de avaliar o paciente eu mesmo e obter o mesmo diagnóstico. Se é uma ciência mas não uma ciência exata, eu deveria ser capaz de obter o mesmo diagnóstico a maior parte do tempo, e nas vezes em que eu discordasse eu deveria poder ver porque a outra pessoa pensou da outra forma.

Mas se eu posso deduzir o diagnóstico sem enxergar o paciente – mas sabendo qual médico – então nós não temos ciência, nós temos política.

(N.d.t.: nos Estados Unidos nas últimas décadas, o Partido Democrático costuma “defender os pobres” e o Partido Republicano costuma “defender os empreendedores”.)

Se tu assiste o noticiário na TV sem som, e um senador republicano fala, e a legenda diz “Redução de Impostos pros Ricos?”, tu pode deduzir a posição dele. Na verdade, a questão em si não importa – o que importa é a afiliação partidária dele. Disso tudo segue. Nem sempre, certamente, mas um número suficiente de vezes pra tu não te dar o trabalho de aumentar o som da TV de volta.

A psiquiatria é da mesma forma. É facílimo determinar quem é considerado um “grande” psiquiatra, ou um “líder intelectual na psiquiatria” com base em quem faz a avaliação, e não em quaisquer méritos do psiquiatra em si. Num corredor Freud é exaltado; em outro vilanizado; Kay Redfield Jameson é o herói. Mas o valor deles, é claro, não tem qualquer dependência do que eles fizeram – depende de quem tu é. Ronald Reagan foi um deus ou um diabo dependendo de quem tu é, não de quem ele foi. Não parece importar que a maioria das pessoas não consegue dizer uma coisa específica que ele fez no cargo, sobre quais guerras e batalhas ele presidiu, o que ele fez ou não fez com os impostos. Ronald Reagan não é uma pessoa, é um símbolo.

É até possível pra mim deduzir quais remédios um paciente toma apenas com base em quem prescreve, e não nos sintomas do paciente. Importantemente, os remédios possíveis variam amplamente de médico pra médico; é errado pensar que a precisão das minhas deduções se baseia em qualquer lógica ou ciência fundamental pra escolha de remédios que deveria ser verdadeira pra todos os psiquiatras. É so o hábito regular, impensado dele. “Eu gosto do Risperdal.” Tu é burro? Tem internistas dizendo “eu gosto da insulina”?

Pra deixar claro: eu não falo de médicos tendo intuições únicas sobre qual remédio pode beneficiar um certo paciente. (“Eu acho que o Geodon pode funcionar muito bem aqui.”) Eu falo de cada médico ter um conjunto de drogas que prescreve com tal regularidade que eu posso adivinhar.


Isso vem de uma falta de apreciação do fato de que problemas psicológicos não são doenças genéticas, ou mesmo primariamente biológicas, ou mesmo, surpreendentemente, psicológicas. Eles são distúrbios sociais. Numa ilha deserta, ninguém pode dizer que tu é louco.

A evidência chave contra a minha posição é a biologia ser tão obviamente relevante. Há um componente hereditário em muitos problemas psicológicos; gêmeos criados separados frequentemente ainda têm taxas de concordância mais altas do que não-gêmeos. Mas isso deixa passar completamente a parte principal do problema. Considera a diabetes: ela é obviamente uma doença biológica, com um componente hereditário. Muito mais biológica do que qualquer problema psicológico, porque é possível indicar a biologia disfuncional na diabetes, mas não no transtorno bipolar. Mas a despeito dessa biologia, o ambiente é tão enormemente importante que frequentemente sobrepuja o componente biológico.

Nós podemos ainda considerar a verdadeira relevância da genética. Coisas que assumimos serem simples resultados genéticos frequentemente são mais complicadas do que parecem. A cor dos olhos é a introdução à genética mendeliana de todo mundo no sétimo ano. Mas – surpresa – não há gene para cor dos olhos. Há na verdade três genes para cor dos olhos, e a cor é determinada pela interação de todos os três. Então tu pode adivinhar cores dos olhos com base nos pais, mas não vai acertar sempre – porque cada um dá três genes diferentes.

Pode ser verdade que transtorno bipolar é genético. Talver fortemente genético, digamos 40%. Nós erramos porque consideramos os genes uma “variável fixa” – nós pensamos que só podemos afetar os outros 60% dos fatores. Certo? Errado; a genética não é fixa. Ter um gene pode ser uma variável fixa, mas se tu expressa esse gene ou não certamente é sujeito a controle externo. Considera o gênero sexual; absolutamente genético, certo? Não há muito que se possa fazer a respeito? Mas lagartos podem alterar o sexo dos filhos mudando a temperatura da incubação dos ovos. Pensa sobre isso. Agora, não é provável que a expressão dos genes pra bipolaridade tenha muito a ver com como tu é criado? E nós já sabemos que o ambiente afeta a expressão genética, então isso não é especulação.