A Pessoa do Ano da Time é alguém que na verdade não importa

(Nota do tradutor: artigo publicado em inglês em 17/12/2006 no blog The Last Psychiatrist (“O Último Psiquiatra”), atualmente inativo.)

É tu.

(N.d.t.: capa da revista Time, com legenda “Pessoa do Ano”; adicionados pelo autor imagem de computador com tela azul e texto “Êeee!! Eu!!” e outra legenda “Parabéns! Tu foi afirmado! Agora vai te foder.”)

A versão curta do artigo da Time é que nós como indivíduos formamos uma comunidade na Internet (YouTube, MySpace, Wikipedia, etc.), e essa comunidade começa a “construir uma nova forma de entendimento internacional, não de político pra político … mas de pessoa pra pessoa.”

Tá. Não. Errado, errado, tudo errado.

O autor desse artigo é Lev Grossman. Grossman é um crítico literário mais ou menos famoso, um dos melhores. Ele também escreveu um romance que é um cumprimento ao Borges. Isso não é ruim, é só contexto.

O problema todo da premissa do Grossman é exemplificado pelo primeiro parágrafo:

“A teoria histórica dos “Grandes Homens” é geralmente atribuída ao filósofo escocês Thomas Carlyle, que escreveu que “a história do mundo é nada mais do que a biografia dos grandes homens”. Ele acreditava que são os poucos, os poderosos e os famosos que moldam o nosso destino coletivo como espécie. Essa teoria apanhou feio esse ano.”

Bem, não exatamente. A tese do Grossman é de que nós importamos, nós podemos moldar nossos destinos; ele contrasta isso com a premissa do Carlyle de que grandes homens ajudam a moldar o destino. Mas isso não é o que Carlyle realmente disse. O texto original:

“Em todas as épocas da história do mundo, nós encontraremos o Grande Homem tendo sido o salvador indispensável da sua época – o relâmpago, sem o qual o combustível nunca teria queimado. A História do mundo, eu já disse, foi a biografia dos Grandes Homens.”

Carlyle não diz que grandes homens moldam o destino; ele diz que grandes homens, e apenas grandes homens, causam história. Esses grandes homens deveriam receber o poder de administrar a sociedade porque só neles se pode confiar pra isso. Grandes homens causam a história, não moldam.

Não se pode confiar na democracia. Socialismo paternalista, ou ao menos uma aristocracia não-hereditária e anti-capitalista, é só o que pode nos livrar das trevas da oclocracia. Indivíduos triunfam sobre ideologia – o que soa como um bom lema, exceto quando indivíduos significa Stalin e ideologia significa liberalismo. Ah, e o último livro que Hitler leu foi a História de Frederico II da Prússia do Carlyle.

Então o Grossman não tá realmente representando Carlyle direito. Isso é importante porque o Grossman é um crítico literário com um doutorado de Harvard em literatura comparativa. Ou ele simplesmente não sabia isso sobre Carlyle, o que eu tenho que presumir impossível, ou saber não fez diferença: ele se apossou da citação, arrancou o sentido que Carlyle deu e usou da forma como precisava usar. E isso descreve exatamente o problema: verdade e realidade não são importantes, o que é importante é tu.

Porque “Você” como Pessoa do Ano é um baita sinal. É tanto representativo quanto sintomático do problema do nosso tempo: narcisismo. Hoje em dia nós estamos tão alienados e importamos tão pouco pra sociedade maior que a única coisa que inflama alguma paixão é sermos lembrados disso. Considera Bush e Cheney. Põe a política de lado por um momento, é claro que o foco do propósito deles ignora cada um de nós como indivíduo. Dá a eles o benefício da dúvida, sobre eles estarem fazendo o que eles acham que é melhor. Mas é melhor pra sociedade, pros Estados Unidos: o que nós odiamos é que não é pra nós, pra ti, pra mim. Isso é o que as pessoas odeiam neles, a aparente indiferença ao nosso valor individual, ao nosso senso de importância. Nossos votos não contam; tudo é sobre religião; “Guerra Global Contra o Terrorismo”. Cadê nisso tudo o indivíduo? Nós somos ferramentas pra “causa superior” deles. Eu conheço gente que diz ter raiva da causa; mas eu acho que é raiva de nós estarmos sendo usados pro que quer que seja.

(N.d.t.: o que eu pretendo aqui é em geral eu só traduzir e o que eu penso não ser importante, mas sinto que tenho que abrir exceção pra pedir desculpas pelo parágrafo acima sugerir que a Guerra do Iraque reduziu, ou sequer foi tentativa de reduzir, o terrorismo, como a década-e-meia seguinte mostrou. Mas achei que o artigo vale ler, e que não devo cortar os parágrafos que me desagradarem.)

Estar no YouTube, ter um blog, ter um iPod, estar no MySpace – tudo isso é auto-afirmativo, permite a ilusão que é tão importante pra narcisistas: de que nós somos os personagens principais num filme. Não que nós somos os melhores, ou os bons, mas os principais. Que todos em volta de nós são coadjuvantes; o amigo engraçado, a ex louca, a mãe neurótica, o imbecil egoísta com tive um encontro, etc. Isso faz sermos relembrados da nossa insignificância ainda mais enfurecedor.

Dá uma olhada nas fotos no artigo da Time: um DJ, um roqueiro punk, um cara com dreadlocks, um guri dançando com fones de ouvido, um cara cantando ao microfone, uma gostosa tirando foto dela mesma – nenhuma dessas pessoas jamais poderia ser “Pessoa do Ano”. Elas mal têm identidades além das suas imagens. (E observa quantas são definidas pela música que escutam.) Elas precisam ser definidas por algo de fora, como uma tatuagem. Mas elas merecem tudo que qualquer outra pessoa pode ter. É direito delas.

Eu não digo que cada um de nós como indivíduo é insignificante. Nós devemos, podemos, importar. Mas pra nos proteger de uma implosão existencial, nós decidimos nos definir através de imagens e sinais, ao invés de comportamentos; não ter uma identidade fundamentada em qualquer coisa real nos deixa vulneráveis a raiva e ressentimento. Mas nenhuma culpa, nunca. O narcisista nunca sente culpa. Ele sente vergonha.

Isso não pode durar. Se a sociedade escolher fazer do narcisismo o estado normal, vamos ter que lidar com feridas narcísicas sobre a sociedade toda – quando nós subitamente percebermos que o filme não é só nosso e não somos realmente personagens principais. E ninguém quer assistir esse filme idiota de qualquer forma. Isso inevitavelmente leva a violência: o tipo de violência do atirador na escola, de facadas inexplicáveis por causa de um PlayStation 3, da Andrea Yates, de espancar a esposa porque ela usou os sapatos errados. Ah, não eram pumps de salto alto brancos? Essa cadela! Ela usava eles pro outro namorado.

Eu não tenho certeza de que alguém na psiquiatria vê isso – eles tão ocupados demais documentando os excessos da indústria farmacêutica e os resultados do Lamictal – mas esse é o problema do nosso tempo. Os únicos que parecem perceber são os anunciantes – eles veem. Eles não julgam, só lucram.

Grossman pôde moldar Carlyle na forma que queria porque Carlyle não importa, o que importa é o que Grossman queria, do que Grossman precisava. Carlyle não existe, ou só existe conforme nós precisarmos usar. Ele se torna uma ferramenta, outro coadjuvante. Alguém ainda lê Carlyle? Pra quê? Nós só precisamos de umas frases chamativas pro nosso uso. Grossman é claramente um bom escritor e dificilmente o problema aqui. Mas escolher “Você” pra Pessoa do Ano só reforça a fantasia coletiva de que nossos eus individuais importam mais do que outras pessoas, ou bens coletivos, ou ideologias, ou verdade, ou certo e errado. É relativismo com uma cereja em cima.

Não vai durar. Absolutamente não pode.

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