Conhecer uma só história

(Nota do tradutor: artigo publicado em inglês em 24/05/2006 no blog The Archdruid Report (“O Relatório do Arquidruida”, agora inativo) e traduzido com permissão do autor John Michael Greer a partir de cópia autorizada. O blog foi também publicado como série de livros – esse artigo aparece no primeiro; e os blogs atuais do autor são Ecosophia e Toward Ecosophy.)

O caminho druídico pode ser seguido em qualquer lugar, mas pra mim, ao menos, sempre é um pouco mais fácil num lugar aberto entre coisas verdes crescendo. Isso não exige um lugar selvagem; algumas das experiências mais transformativas do meu caminho druídico tiveram lugar numa semana de meditações ao amanhecer no Poço do cálice em Glastonbury, que não foi selvagem em qualquer ponto dos últimos cinco mil anos. Ainda assim, há muito a se dizer em favor do prado às margens de um córrego nas Cascatas no Oregon, com o sol começando a atravessar a neblina da manhã e os ruídos distantes do café da manhã no acampamento sobrepujados por canto de pássaros e água corrente. É onde eu estava, no meio da minha meditação do amanhecer, quando três frases se cochicharam no silêncio dentro da minha cabeça.

Conhecer muitas histórias é sabedoria.
Conhecer nenhuma história é ignorância.
Conhecer uma só história é morte.

Tenho pensado sobre essas frases no ano e meio desde aquela manhã, e quanto mais eu penso sobre elas mais elas me dizem sobre onde nós estamos hoje e como nós chegamos aqui.

Culturas tradicionais ao redor do mundo têm uma riqueza de histórias, e uma parte bem grande da educação nessas culturas consiste de compartilhar, aprender, e pensar sobre essas histórias. Elas não são apenas entretenimento. Histórias são provavelmente as mais antigas e mais importantes de todas as ferramentas humanas. Nós pensamos com histórias, encaixando a “grande e barulhenta confusão” do universo em torno de nós em padrões narrativos que fazem o mundo fazer sentido. Mesmo hoje, nós usamos histórias pra nos dizer quem nós somos, como é o mundo, e o que nós podemos e não podemos fazer com nossas vidas. É só que hoje em dia as histórias mudaram.

Uma das coisas mais chamativas entre histórias antigas, as histórias de culturas tradicionais, é que não há duas com a mesma moral. Pensa nos contos de fadas com os quais tu cresceu. Eles põe pessoas diferentes em situações diferentes com resultados muito diferentes. Às vezes violar uma proibição traz sucesso (“João e o Pé de Feijão”), às vezes traz desastre (“A Bela Adormecida”). Às vezes a vitória é do humilde e paciente (“Cinderela”), ás vezes daquele que se dispõe a tentar o impossível (“O Gato de Botas”). Há temas comuns nas histórias antigas, claro, mas infinitas variações sobre eles. Essas diferenças são uma fonte de grande poder. Se tu tem uma riqueza de histórias diferentes com que pensar, as chances são de que, pra quaisquer problemas que o mundo te apresente, tu vai conseguir achar padrões narrativos com os quais interpretar.

Ao longo dos séculos recentes, no entanto, a abordagem multi-narrativa das culturas tradicionais tem dado lugar, especialmente no Ocidente industrializado, a uma forma de pensar que privilegia uma história acima de todas as outras. Pensa em qualquer ideologia política ou religiosa atualmente popular, e tu provavelmente vai achar no centro dela a afirmação de que uma e apenas uma história explica tudo no mundo.

Pros cristãos fundamentalistas, é a história da Queda e da Redenção que termina com a Segunda Vinda de Cristo. Pros marxistas, é a história muito parecida do materialismo dialético, que termina com a ditadura do proletariado. Pra racionalistas, neoconservadores, a maioria dos cientistas, e boa quantidade de pessoas comuns no mundo desenvolvido, é a história do progresso. A esquerda e a direita políticas têm cada uma sua história, e assim por diante.

Um sintoma de conhecer uma só história é a certeza de que, qualquer que seja o problema que aparece, a solução é a mesma. Pros cristãos fundamentalistas, qualquer que seja o problema, a solução é se render a Jesus – ou, mais diretamente, ao cara que diz poder te dizer em quem Jesus quer que tu vote. Pros marxistas, a solução única pra todos os problemas é a revolução proletária. Pros neoconservadores, é o livre mercado. Pros cientistas, é mais pesquisa científica e educação. Pros democratas, é elger democratas; pros republicanos, é eleger republicanos.

O problema é que o universo é o que os ecologistas chamam de um sistema complexo. Num sistema complexo, realimentação e consequencias inesperadas fazem piada de tentativas simplistas de predizer efeitos a partir de causas, e nenhuma solução vai responder efetivamente a mais do que uma pequena porção dos desafios que o sistema oferece. Isso leva ao segundo sintoma de conhecer uma só história, que é fracassar repetidamente.

A história econômica recente oferece um bom exemplo. Nas últimas duas décadas, defensores do livre mercado no Banco Mundial e no Fundo Monetário Internacional (FMI) têm empurrado um conjunto específico de reformas sobre governos e economias ao redor do mundo, insistindo que essas reformas são a única solução pra todo problema econômico. Em todo lugar onde elas foram completamente implementadas, o resultado foi desastre econômico e social – pensa na Ásia Oriental no fim da década de 1980, ou na Rússia e na América Latina na década de 1990 – e os países devastados por essas “reformas” voltaram à prosperidade só depois de as desfazer. Nada disso impediu os crentes no livre mercado de continuar avançando rumo à utopia imaginária que a história deles promete.

Se tu conhece muitas histórias, e sabe como pensar com elas, a complexidade do universo é menos problemática, porque tu tem uma chance muito maior de poder reconhecer qual história o universo parece estar seguindo, e agir de acordo. É interessante que se tu não conhece nenhuma história, tu ainda pode te virar; apesar de não ter os recursos da sabedoria das histórias à disposição, tu pode ser capaz de julgar a situação em si mesma e agir de acordo; tu tem flexibilidade.

Mas se tu conhece uma só história, e te dedica à idéia de que o mundo faz sentido se e somente se interpretado através do filtro daquela uma história, tu te prende a uma postura rígida sem opções de mudança. Na grande maioria dos casos, tu fracassa, porque a complexidade do universo é tal que nenhuma história específica é ferramenta útil pra entender mais do que uma parte bem pequena dele. Se tu pode reconhecer isso e largar a tua história, tu pode começar a aprender. Se tu tem o teu ego envolvido na idéia de ter a única história verdadeira, e tenta forçar o mundo a se encaixar na tua história ao invés de permitir que a tua história mude pra se encaixar no mundo, os resultados não vão ser bons.

Isso leva ao terceiro sintoma de conhecer uma só história, que é a raiva. O fracasso é um presente porque ele oferece a oportunidade de aprender, mas se o presente é emocionalmente difícil demais de aceitar, a saída fácil é se refugiar na raiva. Quando nós nos irritamos com gente que discorda de nós sobre política ou religião, eu venho pensando, o que realmente nos irrita é o fato de que a nossa uma história não se encaixa no universo todo sempre, e aqueles que discordam de nós apenas nos lembram desse fato desagradável.

Muitos comentaristas, e também muita gente comum, comentaram sobre o nível extraordinário de raiva que percorre os Estados Unidos hoje em dia. De entrevistas de rádio a debates políticos a conversas comuns, o diálogo deu lugar ao xingamento em todas as tendências políticas. É improvável ser uma coincidência isso ter acontecido ao longo de um quarto de século em que as grandes narrativas dos dois principais partidos políticos dos Estados Unidos fracassaram no teste da realidade. As décadas de 1960 e 1970 viram os democratas terem a chance de fazer as reformas que eles queriam; a de 1980 e a primeira do século 21 viram os republicanos terem a mesma oportunidade. Os dois partidos se viram frustrados por um universo que se recusou obstinadamente a cooperar com as suas histórias, e com infeliz frequência, gente dos dois lados buscou raiva e bodes expiatórios como formas de evitar repensar suas idéias.

Esse hábito de raiva não vai nos ajudar, ou a qualquer pessoa, conforme nós vamos rumo a um futuro que promete deixar a maioria das histórias familiares da nossa cultura em farrapos. Conforme nós encaramos as realidades indesejadas de exaustão de recursos, instabilidade ambiental, e a inevitável ressaca das décadas de bebedeira da nossa economia fantasiosa, nos prendermos a uma história específica que nos agrade pode ser reconfortante no curto prazo, mas leva a um beco sem saída familiar àqueles que estudam as histórias de civilizações extintas. Aprender outras histórias, e descobrir que é possível ver o mundo de mais do que uma só forma, é um caminho mais viável.

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